quinta-feira, 20 de maio de 2010
A Vírgula.
Certa vez quando eu era criança meus pais foram convidados pela diretoria do meu colégio para uma reunião particular. Era assunto grave segundo a carta. Grave e impreterível. Nervosos e curiosos, como em toda primeira vez, meus pais compareceram na hora exata. Foram recebidos pelos olhos intrigantes e firmes de uma senhora de meia idade. O assunto foi só um: a minha vírgula. Já haviam me alertado sobre essa minha infame, mas eu realmente não alcancei a gravidade da minha vírgula. Não podemos admitir a permanência de sua filha, disparou pela boa seca e irritantemente colorida de vermelho. Uma aluna exemplar. Boas notas. Ótimo comportamento. Se fosse um ponto final, umas reticências... Até um ponto de interrogação nós aceitaríamos, porém, ela tem este gravíssimo problema, a vírgula; completou. Meus pais saíram envergonhados e com uma dor latente na cabeça, misto de pena e culpa. Tadinha, eu ouvi por trás da porta. O espelho só me mostrava a vírgula. Nunca vi junto a ela algo errado. Nunca. Não devia incomodar a ninguém, era ela e eu, canalhice por cúmplices declaradas, mas ingênuas. Não tinha culpa eu pela minha vírgula. Não tenho. E, até hoje, nem sinto culpa por causar tal desespero aos que identificam em mim a vírgula. Nunca entendi porque a discriminação. Nunca havia entendido até certo dia. Até um dia comum de bebedeira sem causa. Cruzei o olhar, os cílios longos, olhos perfeitos dividiam a minha atenção com sua boca. O sorriso era cínico, patético e apaixonante. Não era justo que houvesse em uma só pessoa toda essa soberana beleza. E não era a beleza estática de personagens rasos que podemos ver através de um único ângulo estampado nas esquinas sujas de uma rua qualquer. Era a beleza invejável, chegava a incomodar. Sabe como é? Dói. Chegava a doer de tão bonito. Nossos olhares se cruzaram pela segunda vez e ali ficou. Até hoje meu olhar nunca volto. Está perdido. Até hoje. Perdido. Parou no exato momento que eu encontrei bem ali, no lado esquerdo da boca, estrategicamente localizado. Naturalmente. Ali bem no cantinho esquerdo. A vírgula. Além da minha, nunca tinha visto uma vírgula. Nem o esboço de uma vírgula eu tinha visto.E era igualzinha a minha. Era o segredo de uma pessoa perdida. Meu avô me dizia que a minha vírgula era a certeza de que tinha muito mais para acontecer. Era a certeza do presente incerto. Talvez mostrasse também que por trás de um sorriso bonito, vírgula, poderia haver muito mais. Nunca entedia muito bem as explicações vagas do meu Vô, mas naquele instante eu entendi tudinho. Era exatamente isso: incompreensível e insuportável. Entendi toda discriminação que eu passei e perdoei a todos. Aquela imagem do sorriso e a vírgula, da vírgula, tomaram conta de todos os meus pensamentos. Situação insustentável. Não queria mais chegar perto daqueles olhos pidões nem tampouco daquela boca sugestiva de vírgula perigosa. Não suportaria conviver com tamanha responsabilidade. A vírgula exigiria de mim uma continuidade e eu não suportaria tamanha responsabilidade. Jamais.Beijar uma vírgula é como se entregar a vida, altamente perigoso. E cada vez mais eu entendia e perdoava todos que me discriminavam. Era mesmo um deboche aquela vírgula. Só alguém de muita coragem para beijá-la. Eu? Não tenho mesmo. Coragem de beijar uma vírgula? Coragem de se entregar a vida assim sem avistar sequer um ponto final? Eu não tenho, não. E então? Nada. Minha vírgula está guardada para uma coragem insonhável.
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comento sobre o texto depois, no momento, WHERE ARE YOU?
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